sexta-feira, 25 de março de 2011

Tables and Rites: fabulação filosófica, gesto teatral, especulação

Fotos: América Cupello
AMERICA CUPELLO MARCH 24 AT 3:02PM REPORT

A questão do drama e da cena é essencial em minha fotografia, desde o início. Eu queria ser escritora, mas acabei cursando jornalismo na UFF e foi numa disciplina chamada foto-reportagem que tive contato direto com a fotografia, e pela primeira vez pensei em fotografar. Escolhi um amigo para posar e criei meu primeiro tableau, que envolvia personagem, set, não tinha nada a ver com reportagem, inventei uma cena e fotografei um personagem dentro de uma piscina vazia. Escolhi figurino, maquiagem, o modo diretorial já estava ali, tive a sorte de encontrar um professor visionário e recebi muitos elogios pela ousadia.

Naquele momento eu percebi que podia contar uma história com imagens. Daí em diante, passei a fotografar com esta idéia de encenação muito forte. Claro, que a fotografia sempre é construção, mas meu foco era realmente o viés teatral, a cena, a ficção.

No caso do still life é a mesma coisa. No momento em que estava cursando o doutorado entre 2006 e 2010, minha preocupação era achar uma pergunta inaugural para minha tese, e aconteceu que achei ao invés disso, um gesto inaugural, esse gesto foi vestir e desvestir uma mesa. Gesto teatral, mas também gesto especulativo fotográfico. O ambiente da escola de Belas Artes me influenciou com todas aquelas aulas sobre Barroco, Natureza-morta, etc. Então para relaxar um pouco daquele conteúdo teórico muito denso, comecei a trabalhar com uma toalha de mesa dionisíaca, ou seja, comecei um processo de tingimento dionisíaco com vários tipos de vinho sobre uma toalha na mesa de minha casa-estúdio, e isto me conduziu aos rituais que envolvem a mesa, inclusive o still life. Fiquei totalmente obsessiva com estas construções efêmeras que revelam passagem do tempo, decadência, morte e vida.

A intenção de rever esse momento na história não é a de reproduzir as suas intenções, seus temas e simbolismos, mas sim pensar formas idiossincráticas, novas possibilidades formais com o intuito de repensar o conhecido e o familiar, sob uma nova ótica. Nessa arqueologia ao contrário, quis propor encenar e construir com os objetos, uma sintaxe deslocada, que verte do próprio ato de fotografar entendido como um trespassar para dimensões imemoriais. Trata-se de uma arqueologia ao contrário, em vez de escavar, construir, (vertendo o vinho sobre a toalha que era branca) camadas, películas, tratou-se de dar forma a uma ruína.

Nesse processo com a teoria fui confrontada com essa questão de gênero na fotografia (jornalismo, moda, retrato, etc), mas vejo que essa preocupação acaba caindo por terra quando nos aproximamos do fenômeno da imagem, pois é por meio dela que a teoria se faz, não o contrário. O vício das classificações permanece no ensino de arte e nas instituições, mas os teóricos mais inquietos, como Douglas Crimp, ele percebe, que a fotografia não é um sistema homogêneo. Sua abordagem enfatiza a fotografia como um centro irradiador e contaminador segundo expressão do autor, que vêm desestabilizar um tipo de discurso e instaurar um sistema heterogêneo que foge a um tipo de classificação ideal, ou a classificação de museu. A meu ver, é nesse terreno arriscado e cheio de tsunamis que a fotografia opera em suas múltiplas dimensões e não suporta mais as caducas classificações.

A fotografia vista como imagem e objeto para mim é essencial. Embora estejamos caminhando para a profusão de telas e imagens sem espessura, há a meu ver, um desejo de espessura, um desejo de habitar uma interioridade um "ambiente fotográfico", me refiro aqui às instalações fotográficas. Acho essa vertente muito forte.
Neste sentido, percebo elementos seminais como encenação, manuseio de suportes (papeis, vidros, tecidos) de forma experimental, e o fotógrafo como agente e partícipe desse ato.

A fotografia em seu vetor objeto demonstra que o ato fotográfico, como nos colocou tão bem Philippe Dubois, vai além e aquém do clique fotográfico, o objeto demonstra esse tempo esgarçado, esse encenar que não termina na feitura e na exposição digital da imagem. As escolhas do fotógrafo são visualizadas também no espaço expositivo que acolhe esta foto-objeto. Fatores como tamanho, espessura, colocação no espaço efetivamente pertencem a esse ato ou gesto fotográfico esgarçado.

Em minha abordagem, levo em consideração esses aspectos que revelam a fotografia como uma fabulação filosófica que percorre impulsos, trajetos, narrativas e especulações, que se desprendem, na relação entre fotógrafo, repertório e fotografia.

O acaso é essencial. É preciso perceber quando um trabalho começa a ser reorientado pelo acaso, saber ver esta potência e se deixar levar com certeza. Alguns trabalhos são orientados totalmente pelo acaso, pelo bom encontro. Tenho um grande coletivo de objetos, ready-mades que encontrei recentemente na rua. Uma grande quantidade de bonecos que foram guardados durante quarenta anos e depois descartados, todos da mesma época, ensacados, dilapidados e inéditos ao mesmo tempo, um grande paradoxo. Estas luzes encapsuladas nunca alcançaram o olhar a que se destinaram, o olhar infantil. Muito pungente, não é para mexer muito não, estão prontos, só falta colocar a luz, revelar.

4 comentários:

  1. Lendo e vendo as imagens me pego arrebatada de um sentimento que não me permite palavras. E ao mesmo tempo uma vontade gigantesca de poder ver mais e mais...Então, uma pergunta: Como a luz incidirá sobre o corpo frágil (nú?, vestido, travestido?) dos bonecos resgatados de um fim ainda mais trágico que a tragédia anunciada?

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  2. MaravilhosAMÉRICA
    Trabalho lindo, texto pefeito, equilíbrio e beleza. Tantas discussões travamos e que resultado maravilhoso. O conceito de construção da ruína, a partir de uma reconstituição de um passado fabuloso é bastante ousado e paradoxalmente trivial. O melhor é ser o acaso o engenheiro da ruína que remonta ao fato imaginal, imaterial e (co)memorável? Memórias adicionadas cuidadosamente na construção da trama, da teia e do tecido que bordado de imagens, conta uma falácia... um causo hedonista sofrido, uma estoriografia com tessitura, textura e espessura, com notas de Caravaggio em naturezas vivas!!! Plenas de sombras e iluminadas de trevas relevantes – formadoras de relevos, densidades e desidérios!
    Só não compreendo bem a sua recusa à psicologia e ao simbólico uma vez que sua obra dá sinais inequívocos de maturidade inconsciente. Ultrapassa, atravessa e cruza abismos, demonstrando maestria no manejo das vertigens, das fobias e das alegorias. Compreendo a pausa acadêmica de quem precisa distância para observar o objeto, mas em algum momento a bem da complexidade moriniana e latouriana, precisará psicologizar a obra e exibir-lhe a semióse.
    Quando você fala em ressignificação da estrutura arruinada – no sentido mesmo do que se fez ruína por força da decisão do acaso na arqueologia ao contrário de um passado que algo signifique para alguém – parece-me estar lidando com o que aquilo significa em uma instância mais profunda e desapartada da persona.
    Veio-me agora à mente o Tarot e sua ligação inconsciente-mente-fato. Como cartas que iluminam as trevas de sombras que servem de alento ao excesso de luz que a consulta pode revelar. Em que medida a estética vence a significação – não há equívocos para mim de que ela quase sempre vencerá no terreno da exibição e da ampliação da empatia público-obra – quando a significação é presente mesmo que de um modo inconscientemente exuberante?

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  3. Texto e fotos poderosos! Desconcertam a mente do não-artista, mas trazem prazer pela sensibilidade.

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